domingo, outubro 25, 2009

Asfixia católica


Durante a apresentação do seu novo livro, Caim, José Saramago afirmou que "a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana". Bastou esta simples frase, retirada de um determinado contexto relacionado com o livro e a sua temática bíblica, para a Igreja Católica e a Direita reaccionária reacenderem velhos ódios de estimação para com o Prémio Nobel da Literatura de 1998.

A Igreja Católica sempre combateu a liberdade de expressão religiosa que Saramago usa na sua escrita. Em 1991 o Evangelho segundo Jesus Cristo foi censurado de forma ignóbil pela secretaria de Estado da Cultura com o apoio tácito da Igreja Católica e dos seus fiéis lacaios.

O curioso da polémica em torno de Caim foi que desta vez as críticas começaram a surgir após as declarações proferidas no Saramago na apresentação do livro e não na sequência da leitura da obra propriamente dita. Algo que se pode classificar como banal para a Igreja Católica ou não estivéssemos na presença de um comunista inveterado, um ateu militante, que para além destes " terríveis pecados" cometeu o "sacrilégio" de não possuir formação académica num país repleto de "doutores e engenheiros"...


Passemos então em síntese as principais afirmações de Saramago sobre a Bíblia:

"A Bíblia passou mil anos, dezenas de gerações, a ser escrita, mas sempre sob a dominante de um Deus cruel, invejoso e insuportável. É uma loucura!"

"O Corão, que foi escrito só em 30 anos, é a mesma coisa. Imaginar que o Corão e a Bíblia são de inspiração divina? Francamente! Como? Que canal de comunicação tinham Maomé ou os redactores da Bíblia com Deus, que lhes dizia ao ouvido o que deviam escrever? É absurdo. Nós somos manipulados e enganados desde que nascemos!"

"As guerras de religião estão na História, sabemos a tragédia que foram”. E considerou que as Cruzadas são um crime do Cristianismo, porque morreram milhares e milhares de pessoas, culpados e inocentes, ao abrigo da palavra de ordem "Deus o quer", tal como acontece hoje com a Jihad (Guerra Santa). Saramago lamenta que todo esse “horror” tenha feito em nome de “um Deus que não existe, nunca ninguém o viu”.

"O teólogo Hans Kung disse sobre isto uma frase que considero definitiva, que as religiões nunca serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros. Só isto basta para acabar com isso de Deus".

"No Catolicismo os pecados são castigados com o inferno eterno. Isto é completamente idiota!”.

"Nós, os humanos somos muito mais misericordiosos. Quando alguém comete um delito vai cinco, dez ou quinze anos para a prisão e depois é reintegrado na sociedade, se quer".

"Mas há coisas muito mais idiotas, por exemplo: antes, na criação do Universo, Deus não fez nada. Depois, decidiu criar o Universo, não se sabe porquê, nem para quê. Fê-lo em seis dias, apenas seis dias. Descansou ao sétimo. Até hoje! Nunca mais fez nada! Isto tem algum sentido?"

"Deus só existe na nossa cabeça, é o único lugar em que nós podemos confrontar-nos com a ideia de Deus. É isso que tenho feito, na parte que me toca".


Posto isto só me resta concluir que estamos perante um caso de profundo desrespeito à liberdade crítica, criativa e de análise religiosa. Num país profundamente católico não se perdoa o facto de Saramago ser ateu, nem a sua tenacidade em analisar e discutir um assunto que ainda é tabu numa sociedade tão retrógrada e conservadora como a portuguesa.
Ouvimos falar tanto em asfixia democrática na última campanha eleitoral, mas convém realçar a forte asfixia católica que ainda vigora no país. Felizmente já não existe Inquisição, senão Saramago já teria ardido na fogueira há muito tempo...

4 comentários:

Michel Costa disse...

Me identifiquei muito com as palavras de Saramago. Penso a mesmíssima coisa sobre a Bíblia que, para mim, trata-se da maior falácia de todos os tempos.

Abraço.

João Caniço disse...

Michel, não conheço a Bíblia em detalhe, apenas alguns excertos, mas também faço uma leitura semelhante à tua e de Saramago.
Este 'post' tenta apenas defender a liberdade de expressão religiosa, algo que Saramago nunca teve em Portugal... Na última semana quase que não se falou de outra coisa por aqui...
Abraços

Anónimo disse...

JP,

'Felizmente já não existe Inquisição, senão Saramago já teria ardido na fogueira há muito tempo...'
Tive que rir ao ler essa frase.

Bem, sou uma pessoa de razoável educação religiosa. O que discordo não é do teor do que Saramago escreveu, mas sim da sociedade que insiste em execrar pessoas e condená-las por expressar suas opiniões. Acho as palavras dele um tanto fortes, mas as respeito, pois ele tem total direito de dizer o que pensa sobre a Igreja Católica.

Me lembro bem que as minhas maiores dúvidas quanto à fé católica aconteciam no momento em que questionava a ciência e seu papel na sociedade e as sanguinárias guerras religiosas que existiram na Europa patrocinadas por ela em nome de uma supremacia que ela pregava e ainda prega para si e em nome de uma censura religiosa que ameaçava seus domínios políticos e econômicos. Quando tinha minhas aulas no curso de crisma, sentia olhares escandalizados em minha direção, pois estava naquele espaço para debater, eu supunha na minha ingênua concepção de liberdade de expressão.

Não demorou muito para que seguisse um caminho diferente, que preconizava muito mais a harmonia entre homem e natureza. Me encontrei ali, mas confesso que a idéia de Deus, por mais vaga que seja na minha cabeça, está lá.

Acabei falando muito, mas gostei do post e de saber que não só aqui no Brasil, mas em Portugal também, vemos exemplos de intelectuais serem combatidos tão ferozmente pela sociedade capitalista e hipócrita que tira dele oq ue bem quer e joga o resto no lixo, dispensado o respeito pelas diferenças.

bjs

João Caniço disse...

Cyntia, provavelmente exagerei na última frase do 'post', embora acredite que muitos elementos da Igreja Católica tivessem vontade de mandar fazer algo parecido a Saramago...
Gostei muito do teu comentário e revejo-me em bastantes das tuas opiniões e pensamentos. Tal como o Brasil também Portugal é um país fortemente católico e fui educado com base nessas concepções. Fui baptizado, fiz a primeira comunhão e quando segui para a profissão de fé que não cheguei a completar comecei a questionar muitas das coisas e comportamentos relacionados com a religião, não tanto com Deus, mas mais especialmente com a Igreja Católica. Existem muitas situações que estou em total desacordo com o Vaticano e as regras, já para não falar do triste passado das 'guerras santas' e da 'inquisição' entre outros.
Basicamente o que está aqui em causa é a falta de abertura e tolerância que a Igreja Católica mostra em respeitar e aceitar opiniões contrárias, ainda para mais quando vindas de alguém que nasceu num Portugal pobre e miserável, conseguiu instruir-se, potenciou o seu talento na escrita, viu-o reconhecido e cujos 'grandes pecados' para os magnatas capitalistas e do clero são o de ser e afirmar-se convictamente ateu e comunista.
Beijos