sábado, junho 20, 2009

Lendas do Relvado: Futre (Parte I)


Paulo Jorge dos Santos Futre nasceu a 28 de Fevereiro de 1966 no Montijo. Em pequeno dormia com uma bola na cama, como se fosse um ursinho de pelúcia. Criança franzina, mostrava uma habilidade inata e singular com a bola, jogando com o pai no pequeno terraço de sua casa.

O pai de Futre nunca chegou a profissional, embora tivesse jogado em várias equipas nos escalões secundários do futebol português. Futre herdou do pai o talentoso pé esquerdo e este apoiava-o, ensinando-lhe, com a paciência de um professor, os segredos do domínio da bola, as fintas, as simulações de corpo para enganar os adversários. A mãe de Futre era doméstica, nada percebia de futebol, ralhava com o filho quando este chegava a casa com os joelhos esfolados, pedindo-lhe que deixasse essas traquinices e estudasse. Futre detestava os estudos e não lhe fez a vontade, desistindo da escola no segundo ano do ciclo, após reprovar duas vezes.


O pai José, visionário, compreendeu a opção do filho, percebendo que o futuro de Paulo estava no seu maravilhoso pé esquerdo e nem sequer se aborrecia quando o dono da gasolineira que havia perto de casa o procurava, furioso, dizendo-lhe que o Paulo voltara a fazer disparates dos seus! Muitos vidros pagou e não eram nada pequenos os prejuízos!



A evolução no Sporting


Em 1978, aos 12 anos, Futre revelou os primeiros sinais de imenso talento, jogando Futebol de 5 pelo Cancela do Montijo num torneio para promoção do futebol em Alvalade. Brilhou intensamente sendo convocado para competição similar, em Rocheville, na França, de lá voltando com o título de melhor jogador. No Aeroporto em Lisboa estava à sua espera Aurélio Pereira, o mestre do futebol de formação em Portugal, convidando-o a ir para o Sporting. O acordo foi imediato, começava assim a lapidar-se o diamante...


Aos 15 anos ainda era extremamente frágil em termos físicos, era necessário que crescesse mais, que os músculos se fortalecessem, isso fez-se graças a doses, por vezes industriais, de vitaminas. Por essa altura já era profissional de futebol, nunca ninguém o fora tão cedo, vivendo no Centro de Estágio de Alvalade, para evitar a maçada das viagens de barco para os treinos. Sabia-se, também, que no final do contrato que assinara com o Sporting, até Julho de 1987, ganharia 100 contos (500 euros) por mês e que só sonhava ter um grande carro.


Rapidamente queimou as etapas das camadas jovens do Sporting estreando-se com apenas 16 anos na equipa principal, lançado por Josef Venglos. Desde muito cedo os adeptos leoninos habituaram-se a fazer romarias a Alvalade para ver o seu esquerdino explosivo, genial, intuitivo, poderoso, que massacrava os adversário pela aceleração e velocidade, um verdadeiro perigo pela inspiração com que concluía os lances.


Não demorou muito para se afirmar como titular indiscutível, participando em 21 jogos e apontando 3 golos na época de estreia, 1983/84, sendo a grande revelação do futebol português nessa época. Finda a temporada, Futre viria a protagonizar o primeiro caso, dos muitos que a sua carreira acabaria por revelar. Aos 18 anos já era uma referência no Sporting, mas ganhava cinco vezes menos do que quase todos os suplentes que o clube tinha. Por isso, o pai esboçou aquilo que julgava ser a proposta justa para a renovação de contrato. No entanto, esta é linearmente rejeitada pelos dirigentes leoninos, que ameaçam com o empréstimo de Paulo à Académica de Coimbra.


Em termos de selecção nacional as coisas também não correm bem, ao ficar de fora da convocatória para a fase final do Euro’84 a disputar em França, isto após ter-se estreado na equipa principal com apenas 17 anos (estabelecendo um novo recorde luso) no estádio de Alvalade frente à Finlândia em Setembro de 1983.



A afirmação europeia no FC Porto


A renovação de contrato com o Sporting torna-se o grande caso do Verão desportivo em Portugal. Na sombra, o FC Porto, já liderado pelo astuto Pinto da Costa, entra na jogada, sedento de vingança, já que o emblema de Alvalade, tinha arrebatado António Sousa e Jaime Pacheco das Antas, a troco de 30 mil contos (150 mil euros) por 2 anos de contrato.


No primeiro dia de Agosto, como o Sporting não lhe devia um tostão, que fora a causa das rescisões de Sousa e Pacheco, Futre alegou falta de condições psicológicas como baluartes da sua própria rescisão, assinando pelo FC Porto a troco de mil contos (5 mil euros) por mês.


No FC Porto, o seu extraordinário talento é potenciado por Artur Jorge, alinhando como vagabundo na frente de ataque portista, exibindo um futebol desconcertante, assente em dribles e raídes estonteantes que colocavam a cabeça em água às defesas adversárias.


Rapidamente se assume como a grande figura de uma fantástica equipa do FC Porto, que em 3 anos vence dois campeonatos nacionais, uma Taça de Portugal, duas Supertaças e atinge a final da Taça dos Campeões Europeus em Maio de 1987, tendo como adversário o poderoso Bayern Munique.


A campanha europeia de 1986/87 foi o trampolim para Futre se afirmar no futebol europeu, isto após ter passado despercebido na fase final do México’86, assim como toda a selecção portuguesa. Sem grandes problemas, o FC Porto atingiu a meia-final onde lhe calhou em sorte o fortíssimo Dínamo Kiev, baluarte da selecção soviética, com ambas as formações a serem orientadas pelo lendário Valeryi Lobanovskyi.


Futre, com duas extraordinárias exibições e um soberbo golo no jogo da 1ª mão no Porto foi absolutamente decisivo para a passagem do campeão português à final, após duas vitórias históricas por 2-1.


A final disputou-se num estádio do Prater em Viena repleto de adeptos germânicos, convencidos do poderio e favoritismo da sua equipa. Os portugueses, em nítida minoria, reclamavam da má sorte pela ausência do seu goleador e capitão Fernando Gomes, bi-bota de ouro, a contas com uma perna partida, mas confiavam no talentoso pé esquerdo e na velocidade supersónica do rapaz do Montijo.


A equipa do FC Porto entrou timidamente na partida, postando-se na expectativa, deixando desamparados na frente Futre e o argelino Madjer. O Bayern dominou por inteiro a primeira metade, chegando ao intervalo a vencer por 1-0. Na segunda parte o jogo inverteu-se por completo com o FC Porto a surgir totalmente transfigurado para melhor empurrando o Bayern para a sua linha defensiva.


Com o avançar do relógio a pressão do FC Porto acentua-se, Futre tem um lance fantástico sobre a meia-direita, ultrapassando quem lhe aparecia pela frente, falhando por pouco aquele que seria um golo do outro mundo! Logo a seguir, um calcanhar sublime de Madjer e um desvio oportuno do brasileiro Juary assinavam a reviravolta dando a primeira Taça dos Campeões Europeus ao FC Porto!


A projecção e cotação de Futre a nível internacional disparava. Aos 21 anos ficava em 2º lugar na classificação da Bola de Ouro atribuída pela France Football perdendo apenas para o holandês Gullit do Milan. Os tubarões da Europa piscavam-lhe o olho e a saída do FC Porto era praticamente certa, só não se conhecia o destino.



O auge no Atlético de Madrid


Nesse mesmo Verão o Atlético de Madrid encontrava-se em campanha eleitoral com quatro candidatos à presidência. O menos cotado nas sondagens era o desconcertante Jesús Gil y Gil, empresário e alcaide de Marbella. Numa manobra eleitoral perfeita, Gil acerta com Pinto da Costa a contratação de Futre por 630 mil contos (aproximadamente 3,1 milhões de euros) - cabendo ao esquerdino o salário de cerca de 12 mil contos (60 mil euros) mensais por cada um dos 4 anos de contrato - e apresenta o craque português numa discoteca de Madrid completamente lotada! Os sócios colchoneros enamoram-se de imediato com Futre e a vitória de Gil é esmagadora nas eleições!


O objectivo de Gil é construir num curto espaço de tempo uma equipa que possa conquistar o título espanhol que foge do Calderón há já 10 longos anos. Sem se preocupar com gastos, Gil vai contratando jogadores e treinadores a um ritmo alucinante. Só para se ter uma pequena ideia, nos 5 anos e meio que Futre representou os colchoneros teve 15(!) treinadores, o que diz bem da falta de paciência que marcou a gestão de Gil.


Futre afirma-se de imediato como a principal figura da equipa e um dos grandes destaques do campeonato espanhol, tornando-se um verdadeiro ídolo para os exigentes e dedicados adeptos colchoneros, facto que permanece inalterável até aos dias de hoje. As velozes arrancadas tornam-se a sua imagem de marca, tais como as quedas espectaculares dentro da grande área e as assistências desde a linha de fundo para a entrada da área. Desta forma, Futre foi simplesmente decisivo na conquista do Pichichi (melhor marcador do campeonato) de Baltazar e Manolo nas temporadas de 1988/89 e 1991/92 respectivamente.


Em termos colectivos nunca conseguiu concretizar o sonho de vencer o campeonato. O melhor que alcançou foi a 2ª posição em 1990/91, mas a longínquos 10 pontos do Barcelona. A época seguinte foi bastante renhida com o Atlético a terminar em 3º lugar a apenas 2 pontos do campeão Barça e a 1 ponto do Real Madrid, foi o mais próximo que Futre esteve do sonho...


Salvaram-se os dois triunfos na Taça do Rei em 1991 e 1992, o segundo dos quais obtido em pleno Bernabéu diante do eterno rival Real Madrid. Futre fez nesse jogo uma das suas melhores exibições pelos rojiblancos, apontando o primeiro golo do jogo num remate portentoso de pé esquerdo. O alemão Schuster ampliaria a vantagem, fixando o resultado final em 2-0. Caberia a Futre, como capitão de equipa, a honra de receber na tribuna o troféu das mãos do rei espanhol.


A relação de Futre com Gil pode definir-se como de amor-ódio. Muitos foram os casos que marcaram a convivência entre os dois. No Verão de 1989, Futre renova o contrato a troco de quase 30 mil contos (150 mil euros) por mês e escolhe Gil para padrinho do seu primeiro filho. Em Abril de 1990, o horizonte começou a escurecer-se, Futre confessou que estava farto do Atlético, a cabeça ferveu, sendo expulso num jogo por “chamar tudo ao árbitro”! Gil não foi de modas e multou o português em 20 mil contos! A Roma tenta então contratar Futre, mas Gil pede 7,5 milhões de euros para libertar a sua pérola. Futre teve inúmeros treinadores no Vicente Calderón, mas nunca escondeu o quanto gostaria de voltar a trabalhar com Artur Jorge. Por isso, quando o seu antigo treinador foi para o Paris SG, sentiu que talvez tivesse chegado a hora de sair de Madrid. Em Abril de 1992, os franceses apresentam proposta de 6 milhões de dólares, mas o próprio Futre recusou a transferência por divergências com os dirigentes do PSG, anunciando em seguinte que ficaria no Atlético de Madrid para sempre, não obstante os constantes rumores do interesse do Real Madrid na sua contratação.



O fantástico slalom na final de Viena

7 comentários:

Ricardo disse...

nice post , jogador que segui na minha infancia ja que via sempre televisao espanhola :D

Ricardo disse...

"O menos cotado nas sondagens era o desconcertante Jesús Gil y Gil, empresário e alcaide de Marbella. Numa manobra eleitoral perfeita"

que manobra perfeita :| tas a ver o pinto da costa?? ele era 100 vezes pior lol

Menina Ochoa disse...

Hoje li metade, amanha leio a outra metade =P Peço desculpa JP mas isto para o futebol entrar tem que ser um bocado de cada vez =P

João Caniço disse...

Obrigado, CM!
Futre foi o meu ídolo de infância, não por acaso tornei-me adepto indefectível do Atlético de Madrid aos 7 anos de idade!
É verdade, o Gil foi uma personagem e tanto!
Abraços

João Caniço disse...

Pois é, Dreama, o texto está um bocadinho longo, embora houvesse ainda muito mais para dizer sobre Futre...
Bom complemento da leitura!
Beijocas

Michel Costa disse...

JP, faço coro aos outros comentaristas. Esse texto é brilhante e me sinto honrado por sua origem.
Parabéns e obrigado mais uma vez.

João Caniço disse...

Muito obrigado, Michel!
O prazer foi todo meu em poder ter colaborado com o 'A4L'!
Abraços